A ilegalidade da sentença baseada exclusivamente no testemunho policial

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No processo penal acusatório, “adotado” modernamente, o Estado assume a função de acusar (Estado-acusador) e de julgar (Estado-juiz) . Na letra da lei, esse sistema acusatório introduziu a igualdade legal e a presunção de inocência, embora se saiba que a igualdade real e a presunção da culpa são imperativas no processo-crime (1).

Nesse passo, para se chegar à sentença, seja ela condenatória ou absolutória, precisa-se de uma prova criminal. Na instrução criminal, portanto, busca-se a verdade processual; embora, ainda, há alguns que acreditem no mantra da verdade real.

Desse modo, o Código de Processo Penal possibilita, entre outros, os seguintes meios de provas (2):

 Exame de corpo delito e perícias em geral (arts. 158 a 184), confissão (arts. 197 a 200), perguntas ao ofendido (art. 201), testemunhas (arts. 202 a 225), reconhecimento de pessoas ou coisas (arts. 226 a 228), acareação (arts. 229 a 230), documentos (arts. 231 a 238), indícios (art. 239), busca e apreensão (arts.240 a 250) .

Como visto, uma das formas probatórias, e acaba sendo uma das principais – pois “culmina por ser a base da imensa maioria das sentenças” (3), é a prova testemunhal – isto é, a “pessoa que, perante o juiz, declara o que sabe acerca de fatos sobre os quais se litiga no processo penal” (4).

Assim, as testemunhas devem ser “pessoas desinteressadas com o mérito do julgamento e, portanto, não podem ter relação pessoal direita com o que se discute nos autos” (5).

Dessarte, esse meio de prova gera vários questionamentos no processo criminal. Infere-se isso, pois, a busca da verdade processual, quando sustentada por esse tipo probatório, não raro, é uma fonte de erros.

Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos (6), “os erros de testemunhas, que têm o dever de dizer a verdade, mas necessidades de álibi, podem engendrar falsos testemunhos, conscientes ou não – sem falar nos atos falhos como esquecimentos, deformações ou repressões psíquicas”.

Nesse sentido, a grande questão enfrentada em processos que possuem somente o testemunho como fonte de prova, na justiça criminal, é a condenação baseada em testemunhos policiais – principalmente em delitos da Lei de Droga, que se chega a 80% dos casos (7). A celeuma dessa prática é uma sentença fundada na mais frequente prática inquisitorial do Brasil (8) – diga-se, uma condenação sustentada em palavra de quem “investiga”, prende e, posteriormente, testemunha.

Assentado do ponto de vista epistêmico, o testemunho policial, conforme o prof. Antonio Melchior, “não possui qualidade suficiente para oferecer um conhecimento seguro sobre os enunciados fáticos”.

Quando se refere a falta de qualidade dos testemunhos policiais, apoia-se no ensinamento de Magalhães Noronha, segundo o qual “falível que é o testemunho, sujeito a vícios que o deturpem, deve merecer toda a cautela do juiz, não apenas quanto ao conteúdo, mas também quanto à idoneidade de quem o presta, o modo por que o faz”.

Sem embargo, o Judiciário aceita acriticamente a prova testemunhal do policial que participou da prisão, a partir desta premissa: “se não aceitarmos testemunha exclusivamente policial, não conseguiremos outras testemunhas e não condenaremos ninguém” (9).

A instrução criminal, então, torna-se, ao invés de esclarecimentos dos fatos, lugar de “jogo” de cartas marcadas.

Nesse cenário, a polícia agradece, na medida que não se terá que investigar, produzir outros meios de prova e gastar tempo; pois está avalizada, pelo Judiciário, a servir de testemunha de quem ela própria prendeu.

Para se ter uma ideia, em pesquisa feita pelo magistrado Luís Carlos Valois, em análise de 100 acórdãos de apelações em crimes relacionados à Lei de Drogas, 89 faziam referência ao testemunho, exclusivamente, policial.

Para o Supremo, não há impedimento de “o policial que participou das diligências ser ouvido como testemunha” (HC 76.557).

Indaga-se, assim, na mesmo vereda do juiz Hélio Sodré: “se a palavra dos agentes policiais que prendem um acusado fosse bastante para condenar quem quer seja, nem precisaria haver ação penal, nem precisaria haver justiça” (10).

É inegável, pois, no depoimento, o interesse do policial na demonstração de legalidade no seu atuar ou no atuar do colega de corporação.

É necessário mencionar que não se está a defender a posição radical de descartar o depoimento dos policiais integralmente, mas de tomá-lo com reserva, pois seu testemunho tem valor relativo – devendo ser corroborado com outros meios de provas.

Lembre-se sempre que testemunhas são, por definição, terceiros imparciais, sem qualquer interesse no processo, o que não é exatamente o caso dos policiais em relação aos crimes por eles, supostamente, desvendados (11).

Desse modo, jamais se deveria proferir sentença condenatória baseada, somente, nesse tipo de testemunho.

1- CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Reflexões críticas sobre a instrução criminal.

2- BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 392

3 – LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 669.

4 – NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1989.

5- MELCHIOR, Pedro Melchior. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/22/condenar-rafael-braga-apenas-com-base-na-palavra-policial-viola-o-processo-penal-brasileiro/, acesso em 16.10.2017.

6 – CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Reflexões críticas sobre a instrução criminal.

7 – VALOIS, Luís Carlos. O direito da guerra às drogas. Belo Horizonte: Editora D´plácido, 2017, p. 482.

8- MELCHIOR, Pedro Melchior. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/22/condenar-rafael-braga-apenas-com-base-na-palavra-policial-viola-o-processo-penal-brasileiro/, acesso em 16.10.2017.

9 – VALOIS, Luís Carlos. O direito da guerra às drogas. Belo Horizonte: Editora D´plácido, 2017, p. 490.

10 – SODRÉ, Hélio apud VALOIS, Luís Carlos. O direito da guerra às drogas. Belo Horizonte: Editora D´plácido, 2017, p. 497.

11 – BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 485.

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